“Se alguém tiver sorte, uma fantasia solitária pode transformar totalmente um milhão de realidades”.
Maya Angelou
Uma tendência atual da produção audiovisual americana é lançar mão de histórias baseadas em fatos reais, em momentos históricos passados e recontá-los subvertendo a verdade, dando-lhes um final feliz, como se isso fosse mudar o que já passou; como se os artistas tivessem o poder mágico de mudar o mundo e sua história.
Quem começou a fazer isso a partir de sua criatividade e talento foi o roteirista e diretor Quentin Tarantino. Ele recria visualmente o passado, busca a verdade nos seus mínimos detalhes -- seja na direção de arte, figurinos, trilha sonora e até no estilo cinematográfico que remete a essas eras -- mas o roteiro obedece apenas a sua própria e delirante fantasia.
Como um “deus” misericordioso, ele reconta histórias conhecidas e trágicas, dando a elas finais felizes. Foi assim com o herói todo poderoso de DJANGO LIVRE, que vinga os negros escravos justiçando seus senhores perversos. Em BASTARDOS INGLÓRIOS, quando queima todos os vilões nazistas trancados num cinema em chamas, Hitler inclusive. E, em ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD, ao salvar do massacre as vítimas da gang de Charles Manson, castigando os assassinos violentamente em seu lugar.
Mas Tarantino não é o único que anda fazendo esse “revisionismo-retrô”. A série HOLLYWOOD de Ian Brennan e Ryan Murphy (da Netflix), passada na capital norte-americana do cinema dos anos 40, segue um grupo de jovens sonhadores -- atores, roteiristas e diretores – que chega a Los Angeles em busca do sonho.
No filme TO BE OR NOT TO BE de Mel Brooks tem uma piada que eu acho a melhor da fita. O personagem de Mel, o astro e dono do grande teatro de Varsóvia, depois de tentar liberar sua peça da censura nazista, relata desamparado aos colegas de palco o que teve de enfrentar: “Como você explica a um oficial da Gestapo que sem judeus, ciganos (pode-se ler aqui também como negros) e gays, não se faz teatro?”
Pois em Hollywood também é impossível. Sem esses elementos não existe show business em lugar nenhum, nem hoje, nem sempre. Em 1940 não era diferente, e o grupo que protagoniza a série é formado exatamente desses elementos. Na vida real, eles trabalhavam nos bastidores de Hollywood, mas o público não sabia, ou fingia não saber disso.
Na série HOLLYWOOD esses personagem tem direito, finalmente, de sair do armário, trabalhar na indústria sem ser molestados e ainda por cima ganharem muitos Oscars...
A esperança dos produtores da série deve ser que a história da indústria revisitada dessa forma, ajude a sociedade a obter insights duradouros. A série HOLLYWOOD pinta um quadro do que poderia ter sido, cujo efeito, quem sabe, ajude Hollywood a melhorar daqui pra frente. Já que ainda está longe de ser assim.
Outra série que usa os mesmos mecanismos narrativos é a MARAVILHOSA SRA MAISEL de Amy Sherman-Palladino, com sua inebriante atmosfera dos anos 50 revisitada. Midge Maizel é uma dona de casa dos anos 1950, que se torna uma “stand up comedian” de sucesso, tão contundente e inovadora quanto o iconoclasta Lenny Bruce.
A autora Sherman-Palladino explicou que o que a excitou na proposta foi: “Ter uma história de época contada por uma mulher sobre uma mulher extraordinária”, quando em geral os protagonistas são sempre homens.
O fato é que todos esses projetos se mostraram sucesso de público - Vox Populi, Vox Dei!
E, certamente, veremos mais produções em que as verdades históricas serão deixada de lado em nome de uma fantasia catártica com final feliz. Os autores reencenam os fatos não como aconteceram, mas como gostaríamos que tivessem acontecido.
Essa proposta estética é mais do que uma questão de público. É na verdade uma forma de justiça poética. Como no final de BASTARDOS INGLORIOS, em que o alto comando nazista é incinerado por um incêndio causado por uma pilha de filmes de 35 mm, esses novos filmes pretendem destruir a mentalidade fascista preconceituosa, que há tanto tempo discrimina grandes segmentos de nossa sociedade. E isso é bom.
FIM
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